E então adormeci.Adormeci e sonhei.
Eu estava novamente naquela floresta,no mesmo lugar da última vez que havia sonhado.
Tentava segurar meu cabelo que se entrelaçava com o vento e a névoa forte.O céu estava acinzentado,tampando a luz da lua.
A escuridão era tenebrosa,tomando conta de tudo que estava ao meu redor.Havia algumas folhas secas no chão e do céu caíam gotas pequenas e extremamente geladas.Caminhei em frente sem saber onde parar ou se deveria parar.
O medo não havia despertado,até que eu a encontrei sentada no chão com uma guarda-chuva preta aberta novamente de costas.Estava com um vestido vinho tomara que caia que não se encontrava o fim.Seus cabelos tampavam sua pele e caíam por seus ombros.Ela assoviou baixo e se silenciou de repente.
-Existe algo que eu queria te perguntar...Mas acabei acordando na segunda e não terminamos nossa...-Ela me interrompeu.
-Está preocupada,mas não queria ter assustado você.-Ela se levantou e fechou o guarda-chuva,deixando que os pingos manchassem levemente seu vestido.-Venha,deixa eu te mostrar algo.
Ela começou a andar rápido e eu corria para não perde-la de vista.
Parou em frente a um portão alto interminável.Os pingos ficaram mais fortes e o vento uivava alto e bagunçava seus cabelos.
Parei um pouco atrás dela temendo aquele lugar.
O portão estava com uma fresta aberta e parecia nos convidar a entrar.
-Está com medo?-Ela sussurou de cabeça baixa.
-Talvez...-Eu respendi num tom nervoso.
-Não precisa ter.
Ouvi sua voz bem ao meu lado e senti seu suave sopro quente em meu ouvido.Não entendia como,mas ela,que segundos atrás estava na minha frente sem que eu notasse estava parada do meu lado direito me causando um temor repulsivo.Minhas mãos tremiam e a sensação era angustiante,assustadora.Queria fugir dali ou acordar,mas sentia meus pés presos ao chão.
-Acalme-se...Aqui é um cemitério.
Não conseguia olhar seu rosto,meu corpo estava imóvel.
-Mas ninguém precisa ter medo de cemitérios...
Ela segurou minha mão.
-Entenda que quando alguém morre somente o seu corpo permanece enterrado aqui.A sua alma caminha para o lugar que deve ir.
Sua calma me fazia confiar em suas palavras.O medo aos poucos sumia e a curiosidade tomava conta de meu cérebro.
-Quando uma pessoa que amamos é levada pela morte,ela permanece viva dentro de nós...Você estará viva em um amor que nem a morte será capaz de levar.
-Mas não quero que ninguém morra...Não posso perder ninguém,por favor...-Eu implorava como se tudo dependesse dela,e indado momento eu não sabia mais em que acreditar.
Ela foi embora,me deixando ali sozinha aos prantos.Abri os olhos e percebi que a Mi dormia em meus braços.A abracei forte e comecei a chorar,desejando morrer no lugar das pessoas que eu amava.Tentando conter meu medo,adormeci presa aquele braço.
O sol entrava pela janela,avisando que o sábado ao menos seria ensolarado.Minha prima me acordou enquanto penteava os cabelos com uma mão e fazia cócegas em meus pés com a outra.Ela sabia que eu tinha pavor a cócegas,mas isso nunca a impediu de me enlouquecer com esse seu costume estressante.
-Você me assustou de madrugada sabia?-Ela me encarava deixando meus pés em paz.-Sempre fala sozinha?
Largou o pente em cima do que ela batizava de mesinha das anotações e se deitou do meu lado para me encarar.
-Você disse em alto e bom som:Não quero que ninguém morra,e então se calou,parecia estar em um sono profundo sei lá...Verdadeiramente me assustou prima...
Ela passou seus braços em minha cintura e não disse mais palavra alguma.
-Ando tendo aqueles sonhos...estranhos.Acho que...Pesadelos tá bom...-Consenti para seu olhar de indignação e reprovação.-Mas não se preocupe,não vão me machucar...Sempre consigo acordar certo?-Apertei seu queixo e dei uma risada meio sem jeito.
A casa estava silenciosa e calma.Levantei da cama e fui conferir o quarto dos meus pais.Todo sábado meu pai trabalhava normalmente,mas,minha mãe,mesmo estando de férias não estava em casa.Peguei o pente da mesinha e desci as escadas desembaraçando os cabelos e pondo um casaco enquanto a Mi arrumava meu quarto.
Na geladeira havia um recado:
Pâm,fui ao supermercado comprar batatas para fritar no almoço como sua prima gosta.Não demoro.
Beijos,
Mãe.
Olhei no relógio.O ponteiro afirmava exatamente dez da manhã e claramente minha mãe havia acabado de ir,deixando a caneta e um caderno em cima da mesa.
-Relaxada...-Cantarolei baixinho enquanto guardava as coisas no ármario e pegava chícaras,leite e um pacote de bolacha para tomarmos o café da manhã.
Minha mãe raramente ia ao mercado muito cedo,dizia que pelo menos em suas férias merecia dormir até um pouco mais tarde.
Eu teria um tempo com minha prima.Teria um tempo para contar a ela sobre o meu verdadeiro motivo de ter terminado aquele namoro.Me veio a cabeça a gótica do sonho,que havia me falado que eu deveria contar ao menos para a Miriam,e,no final das contas,por pior que fosse eu nunca havia escondido nada dela.As palavras daquela gótica soavam em minha cabeça pesadamente.O desejo de ver seu rosto estava me consumindo e deixando em destroços alguma coisa dentro de mim,mas não desejava voltar a encontra-la,se possível,nunca mais.
Eu contaria para minha família em uma forma unânime,mas para a Mi seria em um momento somente nosso.Nós duas e o vazio da casa.
-Ei Mi,vai demorar muito aí em cima?-Gritei aos pés da escada.-Venha tomar café comigo?
-Calma.Só estava arrumando a cama e escovando os dentes...Algo que aliás você ainda não fez.
Ela desceu as escadas com uma risada envolvente e confortável,algo típico da minha prima.
Enchi minha chícara de café puro enquanto ela se servia de leite com achocolatado.Não gostava de café.Abriu o pacote da bolacha recheada de chocolate e sentou folgadamente na cadeira bem a minha frente.
Eu pensava no que falar e bebericava o café quente.
-Pois bem...Eu sabia que ele não me amava mais...
Abaixei a cabeça evitando seu olhar assustado.
-Quer mesmo...-Ela hesitou.-Falar disso?A gente não precisa...
Eu precisava com certeza falar sobre aquilo.Tentar esconder já estava me enlouquecendo,talvez contar para alguém aliviaria meu desespero inútil e impreciso.
-Você não precisa falar se não quiser...-Ela insistiu.
Largou o copo de leite na mesa e comeu uma bolacha.
-Olha pra mim...Se você quer falar,eu vou te ouvir.
Levantei a cabeça e percebi o brilho em seus olhos.
-Acho que eu já até deveria ter falado disso...-Dei mais um gole no café e continuei com a chícara nas mãos.-Então,como eu dizia...-Procurava as palavras para tocar naquele assunto.-Nosso relacionamento estava uma decadência...-Deixei escapar um sorriso de canto.-Seu cíumes era compulsivo,doentio...Eu dei a ele a oportunidade de destruir da minha vida e assim ele fez...
Tomei o resto do café que esfriava na chícara e a coloquei na mesa abaixando minha cabeça e cruzando minhas pernas na cadeira.
-Você estava sofrendo com ele,eu sabia disso,mas nunca fiz nada para impedir,sou uma idiota mesmo!
Ela parecia inconformada consigo mesma,como se fosse a culpada dos meus problemas impossíveis de se evitar.
-Mas ninguém podia fazer nada...Quando se ama Mi...A gente não pensa,não reage.Nem sei de onde ranquei forças para terminar com ele,nem sei como estou viva sem ele perto de mim...
Deixei escapar uma lágrima e rapidamente tentei me recompor.Não iria chorar na frente dela,não gostava de preocupa-la com coisas banais.
Ela tomou o leite,colocou o copo vazio na mesa e largou o pacote de bolachas.
-Eu deveria ter feito algo sei lá...Mas enfim,qual foi o motivo que te deu tantas forças para se...afastar ?
-Bem,foi numa crise de cíumes...Não conte para ninguém certo?
Ela fez que sim com a cabeça e eu verdadeiramente sabia que podia confiar plenamente nela.
-Foi numa crise de cíumes que as coisas pioraram entre nós dois...Me lembro que meu celular tocou na minha bolsa e ele atendeu.Era um antigo amigo...Naquele dia eu estava gripada e ele só queria saber se eu tinha melhorado...-Suspirei alto com aquelas lembranças.-Me passou o telefone e ficou fuçando nas minhas coisas de um jeito estranho sabe...-Levantei a cabeça e olhei em seus olhos que aos poucos pareciam encher de lágrimas.-Estávamos no quarto dele.A casa dele era grande,e os quartos ficavam em um corredor extenso.O quarto da vó dele era o último do corredor e ficava bem a frente de nós.Ainda sinto o jeito dela de se preocupar comigo...Enfim,falei rapidamente com meu amigo e desliguei,procurando não arranjar nenhuma encrenca mais tarde,mas eu já havia arranjado.Ele pegou um brilho labial da minha bolsa,um presente da minha mãe sabe...Eu senti tanto medo dele,tanto medo daquele olhar de desprezo,mas não fui capaz de fazer nada para conte-lo quando ele...
Minha prima levantou e me deu um copo de água com açucar.
Minhas lágrimas insistiram em cair e eu não as detive.
-Chega,não fale mais sobre isso!-Ela me puxou da cadeira e me abraçou forte.-Não posso te ver assim,não faça isso comigo...Eu não quero saber o que ele te fez ou deixou de fazer...
-Mas eu preciso dizer,preciso contar,tenho que contar...
-Quando estiver realmente preparada,sei que me contará...Mas por hoje,chega!
Ouvi minha mãe destrancando a porta e me esgueirei subitamente daquele abraço,não podia deixar minha mãe me ver chorar de novo,não queria deixa-la mais preocupada com minhas crises tolas.
Em nossa casa havia somente uma entrada que ficava na cozinha bem perto da mesa com as cadeiras.
Esfreguei a manga da blusa no rosto e tentei me recompor,dando um sorriso projetado em direção a porta para não demonstrar a tristeza.
-Oi mãe,trouxe as batatas?
Ela me encarou.
Deu de ombros para minha pergunta inocente e deixou as sacolas em cima da mesa encostando a porta com a ponta dos pés.
Eu sabia que ela estava extremamente chatiada por me ver sofrer com circunstancias que ela desconhecia e segurar as perguntas parecia ser uma tentativa fracassada para ela.Mesmo sabendo que suas perguntas poderiam abrir um buraco imenso em meu peito ela não fugiria mais do seu papel de mãe que consistia em ter uma filha psicopata e esquisita.
-Bom dia meninas...Agora sentem para tomar café comigo.
Ela tirou as sacolas da mesa e as colocou em cima do balcão,pegou uma chícara no ármario e se sentou na cadeira sem tirar os olhos de nós.
Eu e minha prima trocamos olhares repentinos sabendo que não poderíamos escapar daquele olhar de ordenação que minha mãe nos atirava.Não a julgaria por querer saber de meu estado depressivo,mas conversar com ela sobre algo que a deixaria ainda mais preocupada não me parecia uma boa ideia.
Antes do meu ex namorado os diálogos eram excessivos com minha mãe,não escondia nada dela.Com meu pai sempre fui mais quieta,existem certas coisas que não compartilhamos com pais e esse era o caso.Ainda assim sempre tivemos um bom convívio,debatíamos e até trocávamos opiniões sobre a vida alheia,mas,sobretudo,com minha mãe costumava ser mais íntima e amiga,coisas de menina mesmo.
Quando comecei a namorar minha mãe foi a primeira a saber e me apoiou em tudo,me ajudando inclusivamente a apresenta-lo ao resto da família,que,aliás,se encantaram com ele a primeira vista,avisando-o para tomar cuidado comigo e rindo alto pelos cantos.Minha família adorável , eu comentava quando me davam alguma chance de me defender.Eram momentos fantásticos,todos nós reunidos na sala dando gargalhadas de doer a barriga com as videocassetadas que passavam aos domingos.Todos abriram as portas para ele e lhe entregaram a minha vida confiando que ele cuidaria como se fosse a dele e ninguém esperava por nenhuma decepção vindo de sua parte,se perderam em seus encantos sem ao menos perceber que,por trás daquele brilho cativante que carregava havia algo que algum dia acabaria com meus sonhos e planos de construir uma vida que fosse nossa,uma vida que ambos cuidaríamos,sendo então um só.
Desconfiavam que havia acontecido algo terrível entre nós dois,e,por mais que eu negasse,estavam certos.Empurramos nosso relacionamento até um precipício e seguramos em sua mão para nos jogarmos de lá juntos,sabendo que por mais que tudo estivesse dando errado,nosso sentimento ainda era forte,mas já não era o mesmo.Deus,ele me amou,porque não ama mais? era uma breve pergunta que não saía de minha cabeça.Quando nos jogamos do precípicio morremos juntos com aquele sentimento voraz,o suícidio era vazio e repulsivo mas assistimos nossa alma morrendo com tudo que havíamos sonhado e assim deixamos que fosse,sem lápide e sem importancia.
-Mas mãe...Já tomamos o café e eu nem escovei os dentes ainda,sem contar que vou ao parque com a Mi e...
Ela me interrompeu.
-Parque ok,entendi,você vai fazer o que quiser assim que me disser o que está acontecendo!
Descansou sua chícara sem dar nem um gole no café e respirou fundo.Sentei ao seu lado e a Miriam a sua frente fazendo uma trança embutida nos cabelos.
-E exatamente o que você quer saber?-Falei como uma filha rebelde,e ela sabia que eu não era.Todo o stress mais soou como nervosismo de ter que encara-la.
-Você nem fala mais comigo...Pâm,se você não quer falar sobre...Bom,você sabe,mas se terminou com ele e não pretende voltar,dá pra aparecer viva?Porque sua vida parou.
-Ei mãe,eu estou bem aqui,tomando café e tendo conversas bobas com minha prima,eu estou viva e estou me comportando como tal...
-Tudo tão...falso.
Ela me olhou de cima a baixo com repulsa,e,aquele olhar me fez tremer.Eu realmente fracassava quando tentava esconder algo.
Abaixei a cabeça fugindo de seus olhos que continham a pura verdade,mas,no momento que eu estava,a mentira me parecia mais suave e menos dura.
-Olha pra mim Pâmela...
Ela ergueu minha cabeça a força e pegou nas minhas mãos.
-Sou sua mãe volto a repetir...Viva ou volte com ele se isso te faz tanta falta.
As palavras alimentaram as ideias que eu guardava como refúgio em último caso,mas elas só saíram de sua boca porque sua cabeça não fazia ideia dos meus motivos para estar longe dele.
-Desculpa mãe,acho que não quero falar dele sabe,mas logo as coisas vão melhorar,em outras palavras,eu vou melhorar...Estou respeitando minha dor,hoje faz duas semanas e você bem sabe disso...
-Tudo bem,mas viva ta bom ? Viva!
Levantei e subi indo direto para o banheiro escovar os dentes e tomar um banho fervente.A cidade estava sob névoa e garoava fininho,aquele banho me faria acordar e ao menos esquecer daquelas palavras que minha mãe citou com tanta certeza de estar correta que tudo não passava de uma mera bobagem.Eu queria que ela soubesse o tamanho de seu erro,queria mas não falaria para não aumentar ainda mais aquela situação desgastante,situação essa que eu mesma havia causado com meus surtos de tristeza e silêncio.
Me enrolei na toalha enquanto olhava sem muito interesse a fumaça do chuveiro invadir lentamente todo o banheiro,deixando o ambiente aquecido.Sentei no azulejo e soltei meus cabelos,deixando que eles tocassem minhas costas e se esgueirassem para meu rosto causando uma suave cócega.
-Posha,minha mãe vai enlouquecer se eu não melhorar.Pensei e tentei me auto corrigir,implorando para que pelo menos o sorriso virasse rotina em minha boca.
Fui para debaixo do chuveiro e deixei que a água caísse em minhas costas.
Eu precisava mudar tudo,talvez indado momento fosse difícil consertar meu ego,mas um pouco de falsidade ajudaria o lado visível,aquele que minha mãe começava a ficar obcecada em observar todos os dias.Sua preocupação era tão grande que eu sentia seus olhos me perseguindo pela casa,cada passo que eu dava ela fazia questão de saber.Toda essa situação era culpa da minha psicose hostil e insensata.
(...)
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